Política

STF enfrenta pressão internacional por questão indígena





O Supremo Tribunal Federal é alvo de uma forte pressão internacional para que rejeite o marco temporal e assuma uma postura de defesa dos povos indígenas. A partir desta quarta-feira, o STF deve iniciar a consideração do tema que passou a estar no foco internacional como uma espécie de teste do compromisso do país com a demarcação.

De acordo com esta abordagem, nas reivindicações relativas ao direito de propriedade coletiva, os povos indígenas só teriam direito aos territórios ocupados na época da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Agora, o STF retomará o julgamento de um recurso no âmbito de uma ação movida pelo estado de Santa Catarina, que usa o argumento do marco temporal para se opor ao reconhecimento de áreas do território do povo indígena Xokleng. Uma decisão terá repercussão geral e será aplicável a todos os semelhantes.

Uma das pressões vem da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que, nesta semana, reiterou sua preocupação com a tese jurídica do "marco temporal" e advertiu que esta poderia ter sérios efeitos sobre o direito de propriedade coletiva dos povos indígenas e tribais do Brasil.

A tese do marco temporal, de fato, tem sido aplicada pelos tribunais federais, levando ao cancelamento dos processos de demarcação. A Comissão também observou que, em 2018, o STF aplicou a tese do marco temporal em relação ao território indígena Guyraroká, anulando processos de demarcação iniciados através de um relatório de identificação e delimitação de 25 de novembro de 2004.

"A Comissão recebeu informações durante sua visita de 2019 ao Brasil de que a comunidade permanece fora da maior parte de seu território, ocupando atualmente menos de 5% da área identificada, com o risco iminente de despejo", indicou.

Para a CIDH, portanto, a aplicação desta tese "contradiz as normas internacionais e interamericanas de direitos humanos, em particular a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas".

A abordagem, segundo a entidade, "não leva em consideração os inúmeros casos em que os povos indígenas foram deslocados à força de seus territórios, muitas vezes com extrema violência, razão pela qual não estavam ocupando seus territórios em 1988".

"A proteção do direito de propriedade coletiva, uso e desfrute sobre ele, é necessária para garantir sua sobrevivência", declarou.

"Além disso, a CIDH lembra que a Corte estabeleceu que os povos indígenas e tribais que perdem a posse total ou parcial de seus territórios mantêm seus direitos de propriedade, sem limite de tempo, enquanto subsistir sua relação fundamental com seu território ancestral", insiste.

"A Comissão Interamericana chama o Estado do Brasil, em particular o Supremo Tribunal Federal, a adotar as medidas necessárias para rever e modificar as disposições das ordens ou diretrizes judiciais, tais como a tese de "marco temporal", que são incompatíveis com os parâmetros e obrigações internacionais relativas aos direitos humanos dos povos indígenas e tribais", completa.

Para a Human Rights Watch, a questão vai além do STF. Enquanto a corte avalia o caso, a entidade internacional destaca como um projeto de lei avançou no Congresso, no mesmo sentido do reconhecimento do marco temporal. "Em junho, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou sua última versão. A proposta será analisada pelo plenário e, se aprovada, segue para o Senado", indicou. O projeto estava praticamente parado desde 2007. Mas ganhou força com o governo de Jair Bolsonaro.

De acordo com a HRW, o Brasil tem, sob análise, 237 pedidos de demarcação de terras indígenas. Em 2017, o presidente Michel Temer adotou como política a tese do marco temporal, e o presidente Jair Bolsonaro deu continuidade a ela. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o governo Bolsonaro, na prática, suspendeu a demarcação de 27 terras indígenas com base nessa política.

"Se aprovado, o projeto transformaria essa política em lei. Isso tornaria impossível o reconhecimento dos direitos territoriais de povos indígenas que foram expulsos de seus territórios antes da data arbitrária do marco temporal ou que, de outro modo, não possam comprovar sua presença nesses territórios ou sua reivindicação nessa data", alertou.

"Escolher uma data arbitrária e recusar-se a reconhecer territórios reivindicados posteriormente viola os padrões internacionais", disse a Human Rights Watch.

Também nesta semana, o relator especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Francisco Cali Tzayfaz um apelo para que o Supremo garanta os direitos dos povos indígenas a suas terras, e que rejeite o marco temporal.

"A aceitação de uma doutrina de marco temporal resultaria em uma negação significativa de justiça para muitos povos indígenas que buscam o reconhecimento de seus direitos tradicionais à terra. De acordo com a Constituição, os povos indígenas têm direito à posse permanente das terras que tradicionalmente ocupam", disse o relator.

"Se o STF aceitar o chamado Marco Temporal em sua decisão sobre a demarcação de terras, no final deste mês, poderá legitimar a violência contra os povos indígenas e acirrar conflitos na floresta amazônica e em outras áreas", afirmou.

"A decisão do STF não só determinará o futuro destas questões no Brasil para os próximos anos, mas também sinalizará se o país pretende estar à altura de suas obrigações internacionais de direitos humanos e se respeitará as comunidades indígenas que não foram autorizadas a participar de processos legais que revogaram seus direitos de terra", completou Tzay.

Fonte: UOL 

Novo decano do STF, Gilmar Mendes assume posição de liderança na corte

Desde a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, em julho do ano passado, cabe a Gilmar Ferreira Mendes uma posição protocolar, mas que, a cada dia, atrai mais holofotes: o de decano do Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente o ministro mais antigo da corte, Gilmar Mendes tomou posse há 19 anos, em junho de 2002, e é conhecido por um vasto conhecimento jurídico e traquejo nas articulações entre os três poderes, algo que domina como poucos de seus pares. Este tirocínio poderá ser útil até pelo menos 2030, enquanto ocupa a cadeira de ministro mais experiente da corte.

Até pouco tempo, o posto de decano pouco servia na corte para além de mesuras e deferências. Com a ascensão de Celso de Mello ao decanato, que ocupou de 2007 até o ano passado, a voz de quem ocupa esta posição passou a carregar uma força simbólica capaz de conversar com todos os ministros da corte e levar ao presidente do tribunal uma resposta institucional em nome da corte. Deste modo, a atuação do decano ganha destaque em um cenário de crise instalada entre os poderes e pressões sem precedentes sobre o Supremo.

Professores que estudam o STF e a atuação da corte na sociedade brasileira argumentam que Gilmar Mendes chega a este momento da carreira com um tribunal unido como poucas vezes se viu antes, onde apenas a coesão dos onze ministros pode garantir o futuro do tribunal. Gilmar, no entanto, não tem o histórico de ser aquele que unirá todos os lados do tribunal - e é difícil dizer, hoje, como ele passará a atuar amanhã.

"Sem dúvida, é um ministro que entende como funciona a política, que tem boas relações com diversos atores político - e tem sobretudo um olhar muito sensível ao ponto de vista interno das contingências políticas do Congresso e do Executivo", resume o professor Diego Werneck Arguelhes, do Insper. Na avaliação dele, isso tem origem na “experiência de vida”. Antes das duas décadas de Supremo, Gilmar foi advogado-geral da União, na gestão Fernando Henrique Cardoso, assim como Dias Toffoli foi AGU de Lula e André Mendonça, indicado ao cargo de Marco Aurélio, o foi de Bolsonaro. "Esse tipo de conhecimento encontra lugar no Supremo, e isso não é ruim."

O Supremo está, em 2021, na sua situação mais sensível desde a redemocratização do Brasil, em 1988. Em 2018, durante o julgamento de Lula, um tweet do general Vilas Bôas cobrou a punição do ex-presidente pela corte. Hoje, os ataques diários do presidente Jair Bolsonaro à corte chegaram às vias de fato, com pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes ao Senado, feito de próprio punho. A militância bolsonarista já chegou a protagonizar atos de "ataque simbólico" contra a corte em 2020, com a extremista Sara Geromini comandando uma caminhada com tochas em chamas contra o prédio do tribunal.

Este, no entanto, manteve a guarda alta: com os inquéritos que apuram atos antidemocráticos e contra as fake news promovidas contra a corte, o STF conseguiu desarticular parte de uma rede de influenciadores, empresários e políticos montada para tirar a credibilidade da corte - esta rede, em sua maioria absoluta, tem laços estreitos com o bolsonarismo. Com pessoas pedindo a prisão e destituição de ministros ou mesmo o fechamento do STF, poderá cair no colo de Gilmar Mendes dar repostas duras, assim como Celso de Mello o precisou fazer em alguns momentos, no ano passado.

Apesar de ser um articulador mais hábil do que foi Celso de Mello, argumenta Diego, Gilmar Mendes tende a ser mais próximo de Marco Aurélio - cuja postura gerava dissensos dentro da própria corte. "É difícil imaginar que a posição de decano vá transformar a maneira do ministro Gilmar Mendes de atuar, e transformá-lo no que ele não é", argumenta. "É um ministro muito conflitivo, e não se pode dizer dele o que eu disse do Celso de Mello, um ministro que ficava numa espécie de planalto, equidistantes das disputas com outros ministros."

À mesma conclusão chega o professor da FGV Rio, Thomaz Pereira. "É possível que ele siga esse caminho, mas para ele fazer isso, ele tivesse de deixar de ser o Gilmar Mendes que conhecemos - o ministro que, por vezes, toma posições no qual ele entra em conflito, e passa a ser um dos polos de conflito no tribunal", pondera o professor.

Conflitos envolvendo Gilmar Mendes na corte são pródigos - ainda em 2009, ouviu o então ministro Joaquim Barbosa acusá-lo de manter "capangas" no Mato Grosso. No caso da Lava Jato, o mais influente dentro da corte na última década, Gilmar se tornou um conhecido "garantista", como é conhecida a ala de ministros que prezam, em primeiro lugar, pela garantia de direitos e pela minimização de punições.

Parte da sociedade passou a criticar Gilmar por suas decisões soltando pessoas investigadas e por vezes julgadas por crimes. Após o escândalo da Vaza Jato, Gilmar passou a criticar abertamente a operação, e foi uma das vozes mais eloquentes nos casos que inocentaram Lula na corte. A decisão antagonizou seu papel com o de outro ministro, Luís Roberto Barroso, com quem possui rixas mais antigas.

Thomaz Pereira acredita que Gilmar Mendes, por ter sido líder interno de alguns diversos conflitos, pode ter dificuldades para unir a corte. "É meio difícil falar como se fosse uma voz acima destes conflitos", explicou. "Ele não ser percebida como alguém que fala de maneira neutra no tribunal dificulta que ele seja visto acima destas disputas."

O professor aponta, no entanto, um caráter que não permite ainda garantir que o papel de Gilmar Mendes será este ou aquele. "Um decano não se torna um decano simplesmente porque o decano anterior se aposenta e a tocha para o próximo mais antigo - formalmente isso é o que acontece. Mas um decano se constrói", aponta Thomaz Pereira.

"A gente vai ver, no decorrer dos próximos anos, durante este conflito, em momentos de maior pacificação e futuras crises que talvez aconteçam que a gente irá ver a construção de um possível Gilmar Mendes como decano do tribunal. Não dá para dizer que ele necessariamente ocupar este papel - para isso acontecer, ele teria de deixar um papel que imagino que lhe seja caro - que é o de líder de certas posições dentro do tribunal", diz, antes de concluir. "Não dá para ele ser as duas coisas".

Fonte: Congresso em Foco