Saúde

A ameaça invisível dos assintomáticos com Covid-19





Um ano depois da descoberta do vírus, eles são menos numerosos do que se supunha, mas continuam sendo os principais motores de transmissão da doença

Eles são tão invisíveis quanto o próprio coronavírus. Formam uma legião de infectados sem sintomas, que exibem saúde, mas espalham vírus. São os chamados portadores assintomáticos. Passado um ano de pandemia, hoje se sabe que são menos numerosos do que se supunha. A pesquisa mais completa realizada sobre a transmissão assintomática do sars-CoV-2, feita na Austrália, estima que sejam 17% dos infectados e que sua carga viral, isto é, a quantidade de vírus que carregam, seja menor do que a de pessoas com sintomas de Covid-19. Ou seja, não teriam a mesma capacidade que elas para contaminar alguém. Porém, isso em nada reduz sua importância.

Sua invisibilidade os faz motores da pandemia, destaca um artigo publicado em dezembro, em regime de urgência, na revista americana Science. O artigo salienta a necessidade de testes de diagnóstico rápidos e baratos para que pessoas possam se testar em casa, com regularidade, tenham ou não sintomas. Assinam o trabalho na Science dois dos mais ativos cientistas americanos no combate à pandemia: Michael Mina, da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e Kristian G. Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps. “Testes acessíveis a um maior número de pessoas para detectar assintomáticos infecciosos são um dos instrumentos mais promissores para combater a pandemia de Covid-19, ainda que sejam pouquíssimo empregados”, disseram Mina e Andersen, na Science.

São os assintomáticos que transportam o sars-CoV-2 de lar em lar, bar em bar, dos Réveillons de Trancoso, na Bahia, à Praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, sem febre, tosse ou espirro de alerta que seja. Por não se sentir doente, o assintomático é o meio de transporte ideal para o coronavírus. Ele vai à praia, ao bar, circula pelas ruas, faz compras e não se cansa. Ninguém, nem ele próprio, enxerga algum perigo. E o vírus avança e faz novas vítimas. “Os assintomáticos são cerca de 20% dos infectados, mas podem responder por até 80% das transmissões. A maioria é jovem. E eles emprestam a força de sua juventude à pandemia”, frisou a pneumologista e cientista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Margareth Dalcolmo, que desde o início da pandemia alerta sobre o risco da transmissão assintomática e o papel dos jovens na propagação do vírus.

Em março, quando a Covid-19 ainda não havia revelado toda a sua força destrutiva, pensava-se que 80% das infecções fossem assintomáticas. Porém, um estudo realizado pela equipe de Oyungerel Byambasuren, do Instituto para Saúde Baseada em Evidências, da Universidade Bond, em Queensland, na Austrália, mostrou que esse percentual é de 17%. O trabalho foi publicado na Jammi, a revista oficial da Associação de Microbiologia Médica e Doenças Infecciosas do Canadá. Teve ampla repercussão, merecendo análise na Nature.

Os pesquisadores australianos fizeram uma meta-análise. Isto é, analisaram dados da literatura científica. Ao todo, foram 13 pesquisas com informações sobre 21.708 pessoas. Foram incluídas somente pesquisas que acompanharam pessoas com diagnóstico positivo por RT-PCR (padrão ouro de detecção do coronavírus) por pelo menos sete dias, para que pudessem ser descartadas as que acabaram por manifestar algum sintoma ou mesmo desenvolver Covid-19 mais severa.

Isso foi necessário porque agora se sabe que, quase sempre, o assintomático de hoje é o sintomático de amanhã. Há dois tipos dessas pessoas não tão assintomáticas assim: as pré-sintomáticas e as oligossintomáticas. Na Nature, a cientista Krutika Kuppalli, da Universidade Médica da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, explica que muito da confusão reside na dificuldade de distinguir entre assintomáticos e pré-sintomáticos. “Assintomático é alguém que nunca desenvolve sintomas durante todo o curso da infecção. Já o pré-sintomático é alguém que tem sintomas nulos ou muito brandos, quase imperceptíveis, antes de apresentar um quadro mais relevante da Covid-19. Porém, nem sequer há uma definição padronizada”, observa ela na Nature.

Margareth Dalcolmo acrescentou que os oligossintomáticos são aqueles que têm sintomas, mas não os reconhecem como tais. São coisas brandas, como espirros matinais esporádicos, uma tosse discreta ou uma mera indisposição. As pessoas tendem a imaginar que se trata de alergia ou das antigas e benignas viroses de verão. E saem de casa para espalhar o coronavírus. “O que importa é que o vírus pode ser transmitido quando a infecção não é aparente, não fazendo diferença se a pessoa é assintomática, oligossintomática ou pré-sintomática. E a população tem de estar atenta a isso. Por isso, máscaras e distanciamento social são tão importantes”, enfatizou Dalcolmo.

A dificuldade de identificar os verdadeiramente assintomáticos está ligada à falta de acompanhamento dos casos positivos. Eles são testados, mas a evolução da doença não é acompanhada. Vira mistério médico aquilo que é apenas falta de dados. É o que mostra outro estudo recente sobre os assintomáticos, publicado no final de dezembro na revista médica internacional Lancet. De autoria de cientistas de Cingapura, país com um dos melhores sistemas de testagem do mundo, ele reforça os achados dos australianos.

O líder da equipe, Andrew Sayampanathan, do Ministério da Saúde de Cingapura, disse que seus dados sugerem que os assintomáticos são contagiosos, embora menos do que as pessoas com sintomas. O país asiático testa, e muito. Não apenas profissionais de saúde e de outras atividades de risco. Trabalhadores da construção civil, por exemplo, são testados a cada duas semanas, tenham ou não sintomas. Qualquer caso positivo leva ao rastreamento e ao isolamento dos contatos próximos. E contato próximo em Cingapura é alguém que tenha chegado a menos de 2 metros de um positivo por pelo menos 30 minutos. A equipe de Sayampanathan testou com RT-PCR 628 pessoas com Covid-19 e 3.790 contactantes. As cargas virais, isto é, as concentrações de vírus no trato respiratório superior, foram medidas. “A busca ativa de infectados e o rastreamento dos contactantes devem proativamente procurar pessoas assintomáticas, porque elas podem transmitir a Covid-19 e precisam ser contidas se o objetivo do país é reduzir casos e transmissão”, escreveram na Lancet os cientistas de Cingapura.

Outro trabalho científico, este de cientistas chineses que investigaram a propagação do coronavírus em Wanzhou, na China, mostrou que 75,9% da transmissão se deveu aos infectados assintomáticos e pré-sintomáticos. No estudo publicado na Nature Medicine no fim de novembro, eles concluem que a propagação da Covid-19 em Wanzhou foi controlada com sucesso por meio de distanciamento social, uso de máscara, testagem em massa, rastreamento de contatos e diagnóstico precoce de assintomáticos e pré-sintomáticos. Funciona, mas é tudo que o Brasil nunca fez. “Já disse e repito que teremos o janeiro mais triste de nossa história, com uma multiplicação de casos de doentes e mortos. Mas não precisava ser assim, se uma política nacional de distanciamento social e testagem tivesse sido implementada desde o início da pandemia pelo governo”, frisou Dalcolmo. Quando a pesquisadora foi ouvida por ÉPOCA, ainda não tinha sido divulgado que a pandemia alcançou um novo marco no Brasil no dia 12 de janeiro. Nessa data houve a maior média móvel de casos desde o início das infecções: 54.784 infectados por dia, em média, no intervalo de uma semana.

Faltam medidas de controle, mas a ciência continua a avançar, mesmo tendo como inimigo um vírus e uma doença que eram completamente desconhecidos há um ano. O abismo numérico entre a estimativa de 80% de janeiro a março e os 17% a 20% divulgados em novembro pela pesquisa australiana dá a dimensão do desconhecimento sobre o sars-CoV-2 e a doença que provoca, a Covid-19. Os 80% foram baseados no conhecimento que se tinha sobre outros vírus. Mas o sars-CoV-2 é inteiramente novo, e compreendê-lo em tempo recorde é um dos maiores desafios que a humanidade já enfrentou, ainda em curso. A própria estimativa mais precisa é, na verdade, um avanço, e não um sinal de retrocesso. A ciência saltou abismos muito maiores para chegar ao ponto em que nos encontramos, com mais de uma dúzia de vacinas à vista no mundo, uma esperança concreta contra a pandemia.

Autor de análises genéticas do coronavírus, o cientista Renato Santana, professor do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), observou que não só a transmissão assintomática está associada à população mais jovem, como seu risco continua a ser ignorado e a surpreender mesmo os cientistas. Santana citou o caso de um jovem pesquisador de sua equipe que só descobriu estar infectado porque os cientistas se testam com regularidade. “Ele não tem qualquer sintoma de Covid-19, foi identificado no exame de rotina. Mas, não por acaso, de toda a equipe é o que trabalha em mais lugares e, por isso, circula e se expõe mais”, disse Santana.

Numa pandemia em que quase tudo surpreende, só não deveria causar espanto a história das pessoas que espalham doenças com enorme eficiência sem dar sinais disso. São os chamados superdispersores (do inglês super-spreaders), capazes de contaminar muito mais pessoas que a maioria dos indivíduos. Eles não são a maioria, mas fazem enorme estrago. Margareth Dalcolmo explicou que, se houver um superdispersor numa festa com dez pessoas, cinco poderão ser contaminadas.

Esses assintomáticos superdispersores contemporâneos usam celular e vão ao bar. Mas alguns deles são, sem saber, a versão do século XXI de uma cozinheira irlandesa que causou comoção no início do século XX. Trata-se de Mary Mallon (1869-1938), que migrou para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor, em 1883. Mary havia tido febre tifoide em sua Irlanda natal. Nada muito grave, os sintomas sumiram, mas ela jamais se livrou da bactéria. Não apenas não se livrou, como ainda a transmitia com imensa facilidade. Tanta que seu nome acabou por ser inscrito na história da medicina com a triste alcunha de Mary Tifoide.

De tantos surtos que causou nos lugares em que trabalhava, Mary acabou sendo identificada por pesquisadores da época, num trabalho de investigação até hoje memorável. Ela mesma não tinha ideia de que espalhava doença e morte. Autoridades médicas a internaram num hospital, onde passou três anos. Foi libertada da quarentena com a condição de que jamais voltasse a ser cozinheira, pois a bactéria contamina água e alimentos. Porém, por necessidade, irresponsabilidade ou ambas — não se sabe —, Mary voltou a trabalhar como cozinheira. Mais gente adoeceu. Dessa vez, as autoridades perderam a paciência e exageraram no castigo. Mary Tifoide foi condenada a viver só e isolada. Morreu aos 69 anos. Uma autópsia confirmou que ela continuava infectada.

A história de Mary Tifoide conta muito sobre os percalços da medicina e a ameaça de doenças infecciosas. Hoje, a febre tifoide tem tratamento, com antibióticos, e vacina. Mary e sua triste sina inspiraram também uma personagem da Marvel, conhecida mais recentemente como a vilã Mutante Zero. Mas aí já é outra história.

Fonte: Época Globo