Cotidiano

Na OMS, Brasil defende licenciamento para produzir vacinas pelo mundo.





Num gesto inédito desde o começo da pandemia, o governo brasileiro adotou um tom duro contra governos que acumularam vacinas e sugeriu a abertura de um diálogo sobre como garantir licenças para que laboratórios em diversas partes do mundo possam também fabricar os imunizantes.

O discurso do Brasil foi feito nesta terça-feira em Genebra durante a reunião do Conselho do ACT Accelerator, um mecanismo criado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para garantir o desenvolvimento e distribuição de vacinas e tratamentos contra a covid-19 para países mais pobres.

Em sua intervenção, a embaixadora do Brasil Maria Nazareth Farani Azevedo indicou que chegou o momento de se falar abertamente na possibilidade de que produtores de vacinas permitam negociações para garantir licenças para que outros laboratórios do mundo possam também produzir os imunizantes.

"Esse é o momento de expandir a produção de vacinas para todos os lugares. Esse é o momento de falar em produção local. Esse o momento para falar sobre mecanismos existentes, tais como licenciamentos para ampliar a produção local e para melhorar o acesso às vacinas", defendeu.

A proposta não se refere a uma quebra de patentes ou sua suspensão, como já defendeu a Índia ou África do Sul. Mas, sim, acordos entre as empresas e governos para que tais autorizações sejam concedidas. Com isso, laboratórios pelo mundo que hoje não estão sendo usados poderiam ajudar na fabricação e garantir um maior acesso aos produtos.

Nas últimas semanas, a OMS fez apelos para que acordos fossem estabelecidos neste sentido, indicando para a capacidade ociosa de laboratórios e, ao mesmo tempo, a detenção de direitos de produção para apenas alguns grupos.

Seu discurso foi ecoado pela chefia da OMS, como Bruce Aylward, que lidera a operação de distribuição de vacinas. O governo da Noruega foi outro que, durante a reunião, também defendeu a ideia de licenças para ampliar a produção das vacinas pelo mundo.

Recado para europeus

Mas o discurso do Brasil também serviu como um recado contra governos europeus que, nas últimas semanas, têm imposto controles de exportação e impedido que a AstraZeneca possa fornecer livremente doses de sua vacina para outros países pelo mundo.

Na OMC (Organização Mundial do Comércio), o governo brasileiro já havia questionado a postura dos europeus. Agora, na OMS, a embaixadora fez questão de falar na boa relação que o Brasil mantém com a AstraZeneca, citando a aliança do governo federal como um "exemplo importante" da cooperação para desenvolver e produzir vacinas.

"A distribuição de vacinas deve ser nosso objetivo comum", defendeu a embaixadora. "Se apenas alguns têm a vacina às custas de muitos, não iremos derrotar a pandemia. Pior: com as novas variantes do vírus, que só adicionam camadas de complexidade e desafios, essa pandemia vai continuar a levar vidas e afetar a renda, numa luta diária para pessoas, governos e políticos", disse.

"Para esses países que controlam a maioria da produção de vacinas, temos uma mensagem", insistiu a embaixadora, que pediu que tal situação fosse tratada na OMS. A diplomata foi clara ainda em cobrar ação, diante dos demais países. "Vamos além de princípio e vamos (falar) sobre como fazer vacinas disponíveis a todos e em todos os lugares", completou.

Ela ainda fez uma defesa explícita da vacinação, indicando que essa seria a principal "saída" para a crise. Apesar do apelo, o Itamaraty não citou em nenhum momento o fato de que uma parcela importante da vacinação no país está ocorrendo a partir de vacinas chinesas, negociadas com o governo do estado de São Paulo.

Operação da OMS por vacinas e testes tem déficit de R$ 145 bi

O discurso do Brasil vem em um momento no qual governos ricos têm sido criticados por concentrar grande parte das doses. Dos países que já começaram a vacinar suas populações, 90% são ricos. 75% de todas as 130 milhões de doses já administradas foram para apenas dez países. Enquanto isso, quase 130 países com 2,5 bilhões de pessoas, não tiveram acesso ao imunizante.

Além disso, a iniciativa criada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para garantir o acesso de todos os países por vacinas, tratamentos, testes e equipamentos de proteção contra o vírus da covid-19 está com um déficit de US$ 27 bilhões, mais de R$ 145 bilhões.

Na reunião do conselho da COVID-19 Tools (ACT) Accelerator - o mecanismo criado para arrecadar recursos e distribuir tratamentos e vacinas - deixou claro a crise de solidariedade. Os recursos seriam necessários para permitir que mais de 2 bilhões de doses de vacinas cheguem aos países mais pobres, além de aumentar testes e material de proteção.

Ainda que seja um volume importante de recursos, a OMS insiste que os US$ 27 bilhões representam "apenas uma fração" do impacto econômico da crise ou dos pacotes de trilhões de dólares aprovados por governos para salvar suas economias.

Ngozi Iweala, que preside a iniciativa e é favorita para liderar a OMC, fez o alerta de que, se não parado, o vírus pode tornar ineficientes os atuais instrumentos desenvolvidos. Para ela, fazer o mecanismo funcionar "não é apenas uma questão moral". "Trata-se de um instrumento estratégico e econômico", disse.

Ngozi criticou países que compraram mais vacinas que o tamanho de suas populações ou aqueles que já começaram a administrar doses para jovens e adultos, grupos que não fazem parte dos segmentos mais vulneráveis.

A postura da OMS é de que, uma vez que países tenham vacinado 20% de suas populações, doses devem ser destinadas aos demais países, principalmente os mais pobres. "Escolhas politicas terão de ser feitas", disse.

Tedros Gebreyesus, diretor-geral da OMS, também soou o alerta e indicou que as mutações do vírus ameaça fazer com que as vacinas sejam menos eficientes. "Enquanto a pandemia continuar, o impacto econômico continuará", disse. Para ele, se as variantes ganharem terreno, o mundo pode voltar "à estaca zero" na luta contra o vírus.

Fonte: UOL