Saúde

'Passaporte da vacina' é boa ideia ou discriminação? Em sete pontos, entenda o que está em jogo





Israel já usa, e a União Europeia tem planos para adotar. No Brasil, debate sobre o tema não avançou, mas especialistas ouvidos pelo G1 listam problemas éticos em possível exigência do certificado. 

Países devem distribuir certificados de vacinação para liberar acesso de cidadãos a eventos ou locais de comércio? O tema está ganhando relevância pelo mundo à medida que a vacinação contra a Covid-19 avança. Entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) já se posicionaram e no centro da discussão está o debate sobre a desigualdade no acesso às vacinas. 

G1 ouviu três especialistas que são referência no tema e revisitou o que já está em prática no mundo. Abaixo, veja em detalhes o que você precisa saber sobre o tema em 7 pontos: 

  1. Prática já é adotada em Israel e na Dinamarca, entre outros países, e há previsão de uso na União Europeia;
  2. OMS disse em março que estratégia não é justificada até acesso igualitário à vacina;
  3. Certificados do tipo já existem, como comprovante de vacinação contra a febre amarela em viagens internacionais;
  4. Analistas dizem que exigência dentro do Brasil só seria válida quando SUS assegurar vacina para todos;
  5. Restringir acesso a locais pode ser entendido como forma de discriminação e de ofensa aos direitos humanos, segundo análise de especialista;
  6. Passaporte pode significar aval para relaxamento da prevenção antes de que seja comprovada a efetividade das vacinas contra a transmissão ou até mesmo qual a eficácia contra variantes;
  7. Falta de acesso a vacina em países pobres e exigência de passaporte em viagens internacionais privilegiaria norte-americanos e europeus.

 

Do restaurante ao dilema ético

 

Um restaurante está aberto, funcionando normalmente, mas não para todos, somente para aqueles que completaram o esquema vacinal contra a Covid-19. Na porta, seguranças verificam a autenticidade do "passaporte da vacina" de cada um que deseja entrar. 

Certificar oficialmente pessoas que se vacinaram contra a Covid já é realidade em alguns locais onde a vacinação está avançada, como em Israel. Na União Europeia, a previsão é que o certificado comece a valer no início do verão no continente como estratégia para abrir as fronteiras entre os 27 Estados-membro. Na Dinamarca, o passaporte tem até nome: "Coronapas". 

Considerado uma esperança para volta às atividades e viagens ainda durante pandemia, especialistas afirmam que um "passaporte" ou "passe" da vacina deve ser avaliado com ressalvas, uma vez que esbarra em questões éticas e jurídicas, conforme explica o médico e advogado Daniel Dourado, do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. 

"Só podemos exigir um certificado desse tipo quando o sistema de saúde conseguir assegurar a vacina para todos. Caso contrário, estaremos criando barreiras de acesso ao emprego e serviços às pessoas que não tiveram como se vacinar por falta de vacina" - Daniel Dourado, médico e advogado

Em março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou que a estratégia dos "passaportes" não é justificada enquanto não houver equidade na vacinação contra o coronavírus. 

"Temos que ser excepcionalmente cuidadosos, porque agora estamos lidando com uma situação de iniquidade tremenda no mundo, em que a probabilidade de você receber uma vacina tem muito a ver com o país onde vive, a riqueza e a influência que você ou seu governo têm em mercados globais", disse o diretor de Emergências da OMS, Michael Ryan, em 15 de março. 

No campo da saúde pública, a infectologista especialista em Biossegurança, Sylvia Lemos Hinrichsen, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), lembra que a estratégia de um certificado sanitário emitido contra uma doença específica não é novidade. 

"A ideia é parecida com certificação internacional de vacinação contra a febre amarela, exigida como documento para entrar em alguns países", diz Hinrichsen. 

No caso do coronavírus, contudo, utilizar um documento para garantir a livre circulação dos vacinados ainda não é uma estratégia segura. 

"Estamos no meio de uma pandemia, com altas taxas de transmissão e surgimento de novas variantes. Não temos evidências científicas suficientes para relaxarmos as medidas de prevenção entre os vacinados", afirma a infectologista.

A variedade de vacinas contra a Covid que estão sendo aplicadas no mundo e até dentro de um mesmo país também pode dificultar a estratégia do passaporte. 

"Ainda estamos descobrindo como as vacinas contra a Covid funcionam. Todas serão eficazes contra as variantes do coronavírus que já conhecemos? E se só uma delas for eficaz e tivermos dado passaporte para todos? Em todas elas, a imunidade contra o vírus terá o mesmo tempo de duração? Adotar o um passaporte da vacina não é algo simples como parece", pondera Hinrichsen. 

Diante das incertezas, Hinrichsen considera que a principal preocupação dos países neste momento deve ser vacinar em massa e manter as medidas de controle do vírus. "O que a gente precisa agora é de mais vacinas e vacinação para todos". 

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Questões éticas e legais

 

A vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), a advogada em Direito Médico Camila Vasconcelos, explica que, do ponto de vista da bioética, um passaporte ou passe da vacinação pode funcionar como uma forma de dividir a sociedade e segregar um grupo. 

"Classificar pessoas entre vacinadas ou não nos faz correr um grande risco de discriminação, de ofender os direitos humanos. Estaremos dizendo que uma pessoa tem mais direito que a outra por ter recebido a vacina antes e isso trará uma insegurança muito grande para a sociedade", afirma a vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. 

"Também não é ético termos estabelecimentos e eventos que exijam um certificado de vacinação para deixar apenas um grupo de pessoas entrar", diz Vasconcelos, afirmando que a lógica deve ser a de prevenção e não controle. 

"É dever desses estabelecimentos aplicarem as medidas como uso de máscaras para todos, disponibilizar lugares para os clientes lavarem as mãos e etc., mas sem discriminação." 

Em Israel, onde o passaporte da vacinação funciona desde o começo do ano, a Associação de Direitos Civis se preocupa com a violação da privacidade dos cidadãos desde que o Parlamento israelense aprovou, em março, uma lei que permite ao Ministério da Saúde fornecer às prefeituras nomes e dados de israelenses que não tomaram a vacina. 

 

Israelenses mostram seu 'passe verde', que comprova que tomaram as duas doses de vacina contra Covid-19, antes de entrarem num concerto organizado em Tel Aviv apenas para idosos imunizados, em 24 de fevereiro — Foto: AFP/Jack Guez 

No campo do trabalho, o advogado Dourado afirma que a ideia de um certificado da vacinação está sendo discutida no ambiente das empresas. “O Direito Internacional está observando um movimento em que empresas poderão emitir um certificado para os empregados vacinados poderem viajar e voltar às atividades normais." 

A exigência de vacinação pelo empregador em alguns casos específicos não é exatamente novidade. 

“Pessoas que queiram trabalhar em fronteiras, aeroportos e portos, por exemplo, precisam apresentar carteira de vacinação para determinadas vacinas”, explica Dourado. 

E em relação aos dados vacinais estarem disponíveis em um certificado para consulta de terceiros, o advogado esclarece que nossas informações sobre a vacinação já são públicas. “Pelo número do cartão SUS é possível consultar a situação vacinal de uma pessoa”, diz. 

Apesar de legal, Dourado ressalta que a medida pode ser antiética, principalmente em países onde a vacinação não é em massa. Ele cita o caso do Brasil, onde a pandemia está descontrolada e a vacinação segue lenta e escassa - cerca de 10% da população recebeu a primeira dose até o momento. 

“No Brasil, o ‘passaporte da vacina’ dialoga com a tentativa do setor privado de comprar vacinas para seus funcionários antes do SUS. O setor quer um selo de ‘empregados vacinados’ em um momento que não tem vacina para todos. Adotarmos uma medida assim, no nosso caso, aumentará as diferenças dentro do país”, analisa Dourado. 

Empresas, escolas e políticos consideram “passaportes de vacina” como um caminho para recuperar a economia, nos EUA 

 

Fronteiras internacionais

 

A questão se torna mais complexa quando consideramos um "passaporte da vacina" nas fronteiras internacionais. 

“As vacinas não estão distribuídas entre os países de maneira igual: 75% delas estão em apenas dez países; 70 nações ainda nem têm vacinas. Nesse cenário, se os países centrais adotarem a estratégia de um passaporte vacinal como documento obrigatório, as fronteiras internacionais estarão abertas apenas para americanos e europeus, enquanto que os países periféricos estarão isolados”, ressalta Dourado. 

Para a advogada Vasconcelos, caso venha a valer um "passaporte da vacinação" como documento de viagem internacional, a população brasileira seria umas das mais prejudicadas e discriminadas no mundo. 

"Sem um passaporte de vacina para poder viajar, estaríamos sendo punidos por ações errôneas do nosso próprio governo, e isso não é justo nem ético (...) A vacinação contra a Covid tem a finalidade de proteger as pessoas, e não segregá-las e discriminá-las", completa Vasconcelos. 

 

O que dizem os órgãos de saúde no Brasil

 

O G1 procurou órgãos de saúde para saber a posição deles sobre a estratégia de um "passe" para vacinados contra a Covid no Brasil. 

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) informou por nota que a eficácia das vacinas disponíveis não é suficiente para garantir que o vacinado não se infecte com o coronavírus e transmita o vírus. A entidade também destaca que não se sabe ainda por quanto tempo o vacinado estará protegido e nem se precisaria de algum reforço da dose em um período de tempo após completar o esquema vacinal inicial. 

"Portanto, à luz dos conhecimentos atuais sobre a dinâmica de transmissão viral e eficácia das vacinas disponíveis, além da baixa cobertura vacinal alcançada e a impossibilidade de se vacinar a população abaixo de 18 anos com a maioria das vacinas, é cedo para se falar em um passaporte vacinal", informa o Conass. 

"Um passaporte poderia dar a falsa impressão de que medidas não farmacológicas (como utilizar álcool para desinfecção das mãos, uso de máscara de proteção e distanciamento social) não seriam mais necessárias", diz a nota. 

O Ministério da Saúde afirmou por telefone que não tem material sobre o tema, assim como não tem uma posição até o momento. 

O Conselho Federal de Medicina não se pronunciou até o fechamento desta matéria. 

 

Fonte: G1