Política

Médicos da linha de frente vivem esgotamento e dizem que só consciência coletiva pode ajudá-los





Em março, pior mês da pandemia, houve um aumento de 78% nas taxas de ocupação dos leitos de UTI do estado, se comparados o dia 1º com 31

Ela divide seu tempo entre dois hospitais de campanha —anexos ao Hospital Municipal de São Caetano (ABC) e Hospital da Cantareira (zona norte) —, Hospital Municipal do Tatuapé (zona leste) e duas AMAs (Assitência Médica Ambulatorial) na zona sul da capital paulista.

Há cinco dias, Siqueira surpreendeu seus mais de 33 mil seguidores no Instagram com um relato que é frequente. Naquele dia, longe de finalizar a sua jornada — estava no plantão há 24 horas e a caminho de mais 12 horas no mesmo lugar —ela reclamava de dores de cabeça, pelo corpo, cansaço extremo e estava fragilizada. Chegou a chorar enquanto pedia a colaboração da população.

“Essa manhã, eu estava saindo de um plantão de 24 horas aguardando alguém vir me render e esse alguém nunca existiu. Nossos hospitais, nossos postos, nossas UTIs estão sobrecarregadas. Sabe o que eu fico pensando? Hoje tá um dia lindo. Eu poderia estar na praia, num parque correndo, na minha casa. Esse plantão aqui não existia nos meus planos , mas tudo bem, eu não posso abandonar o plantão pela metade e nem sem médico. Eu não pude escolher.”

“Mas você pode escolher não fazer aquele churrasco com pessoas que não estão convivendo na mesma casa, você pode escolher adiar aquela viagem com os amigos, você pode escolher não sair com os amigos", desabafa.

Alimentação regrada, nas horas certas, e descanso são questões de sorte. Às vezes, a médica só tem 12 horas para descansar, dorme e se alimenta mal.

Médicos da linha de frente do combate à Covid-19 vivem em paralelo uma segunda pandemia, caracterizada pelo esgotamento físico, mental e emocional.

“Nesse momento, não há respiro para os médicos, uma vez que a demanda é muito grande no país. Médicos e profissionais de saúde estão muito cansados porque o enfrentamento diário é cansativo e o número de mortes é impactante. Não é uma doença fácil de se lidar. Muitos médicos e profissionais de saúde estão desistindo de trabalhar com Covid-19, pedindo afastamento ou indo para outras áreas, e não querem mais trabalhar em CTI”, afirma Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Segundo a pesquisa nacional "Os Médicos e a Pandemia de Covid-19", promovida pela AMB (Associação Médica Brasileira) e divulgada em fevereiro deste ano, os médicos relataram que nas unidades em que atuam há sobrecarga de trabalho (42,5%) e profissionais apresentam mudanças bruscas de humor (25%), exaustão física ou emocional (39,5%), estresse (45,2%), dificuldade de concentração (19,8%) e ansiedade (46,6%).

Boa parte (50,5%), de acordo com o estudo, não vê na população a adesão às medidas de combate ao coronavírus, 45% destacam o não uso de máscaras, 13,3% a falta de distanciamento físico e 10,6% a presença em aglomerações, reuniões, festas e confraternizações em bares e restaurantes.

“É preciso mostrar que nós, os profissionais, estamos cansados para servir como alerta para as pessoas. Sentimos uma dor na alma que vem para o nosso corpo. As pessoas precisam se conscientizar, ter a noção de que a doença é letal e entender a gravidade”, diz Siqueira.

Nas longas jornadas de trabalho, estes profissionais estão lado a lado com as superlotações nas UTIs, a carência de leitos e o temor da falta de respiradores, medicamentos e insumos.

De acordo com dados da plataforma SP Covid-19 Info Tracker, criada por pesquisadores da USP e da Unesp com apoio da Fapesp para acompanhar a evolução da pandemia no estado de São Paulo, em 1º de março de 2021, as UTIs do estado tinham 7.281 internados com Covid-19.

No dia 31, a ocupação na terapia intensiva chegava a 12.961, uma aumento de 78% dentro do mesmo mês.

O médico Mario Peribañez Gonzalez, 50, coordena uma equipe com cerca de 45 médicos no Instituto Emílio Ribas, no Pacaembu (zona oeste).

Em fevereiro de 2020, foi à Índia para um retiro de meditação e dias após retornar ao Brasil começou a atuar no enfrentamento à pandemia de Covid-19.

meditação é prática diária e o auxilia a lidar com os dissabores causados pela pandemia. No Emílio Ribas, muitos profissionais ficaram doentes, houve médicos que precisaram de intubação e uma médica morreu.

“O pior de tudo é completar um ano de pandemia com um aumento de casos pior do que foi nos primeiros momentos, principalmente por falta de adesão às medidas sanitárias. É muito desgastante ver os doutores de redes sociais divulgando informações erradas e tratamentos comprovadamente ineficazes”, afirma Gonzalez.

“Somos nós que estamos lá vendo as pessoas morrerem. Cada vez que há um aumento exponencial de casos, o estresse aumenta muito, porque tem que lidar com a escassez. Pela total ausência de adesão das pessoas, temos que lidar com situações em que enxergamos a possibilidade de faltar itens essenciais para a manutenção da vida. Participar disso é altamente estressante para qualquer ser humano. A gente vive com medo de uma cena temida, que é o dia de não ter respirador para todos, que tiver mais gente do que pontos de oxigênio, que faltar itens essenciais para manter as pessoas intubadas sedadas.”

"Ninguém quer ser herói nessas circunstâncias. É desumano. Por isso, me choca não ter o respaldo da sociedade, que é ficar em casa. Eu sei que todo mundo precisa ganhar dinheiro, mas que tal não morrer, primeiro? Que tal não matar? Se você transmite, contribui para que mortes aconteçam. Esse negacionismo leva as pessoas a uma desassociação da realidade. As poucas vezes que pedi para alguém colocar uma máscara quase apanhei na rua”, relata.

Para César Eduardo Fernandes, presidente da AMB, a única alternativa para acabar com o esgotamento dos médicos é diminuir o número de internações de casos graves.

“Para isso, precisamos diminuir a transmissibilidade do vírus, que podemos fazer com a vacina e as medidas já divulgadas e conhecidas por todos e outras até mais intensas e severas, como a restrição de circulação e o lockdown”, afirma.

“Num cenário inóspito e adverso como esse, os médicos estão trabalhando excessivamente, vivenciando situação desoladora e difícil com o insucesso por conta da gravidade da doença. Em algumas situações, precisam tomar decisões extremamente penosas do ponto de vista de saúde emocional. São situações que mesmo para os muito treinados, como os intensivistas, que convivem diariamente com a morte, são extremamente penosas”.

Fernandes explica que o acúmulo da fadiga progressiva com a deterioração emocional decorrente do trabalho leva à exaustão física e emocional de caráter profissional, conhecida como Síndrome de Burnout.

“Um médico nessas condições perde o que de mais nobre ele tem, que é sua capacidade de avaliação, de julgamento, de arbitrar a melhor conduta para o paciente, o tempo adequado para que essa conduta seja tomada, seu espírito crítico”.

Victor Dourado, presidente do Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo, também acredita que o controle da pandemia aliviaria a tensão sobre o sistema de saúde e dos profissionais, mas argumenta que faltam políticas públicas para o combate à doença, como ampliar a vacinação e controlar melhor o isolamento. “É preciso diminuir a pandemia para diminuir a sobrecarga dos médicos e a exaustão”, diz Dourado.

“O trauma da pandemia vai marcar, mas não viveremos uma falta generalizada de médicos no futuro. Precisaremos pensar sobre a forma de organizar o sistema pela falta de financiamento e estrutura do SUS, pois poderemos continuar com o problema de desassistência, como é o caso das cirurgias eletivas, que foram canceladas”, ressalta Dourado.

 

Fonte: Folha de São Paulo